As mazelas da iniciativa privada
Rodolpho Motta Lima
Um dos
princípios basilares do pensamento neoliberal repousa no fato de que ao Estado
se deve reservar o mínimo, porque são os segmentos da iniciativa privada – não
sujeitos às bitolas do regime estatal – que conseguem obter maior eficácia,
eficiência, produtividade, lucratividade, credibilidade e sabemos lá o que
mais...
Na coluna de
hoje, apresento, colhidas em uma única edição do insuspeitíssimo (no
caso) jornal “O Globo” – a do dia 24.02 - , alguns fatos que
permitem uma boa reflexão a respeito dessa tese.
I - Na página 32 do caderno de ECONOMIA, há matéria que cuida
do destino da empresa DASLU, definida pelo jornal como “templo de alto
luxo que está em agonia desde 2005” ,
com dívida estimada em mais de 80 milhões, não considerados, aqui, os 500
milhões devidos à Receita Federal, por fraude em importações. Em 2005, a empresa foi acusada
pela Polícia Federal , também, de formação de quadrilha e falsidade
ideológica, sendo os seus sócios condenados em primeira instância a 94 anos de
prisão, do que recorrem em liberdade.
II – Na mesma página 32, é feita reportagem sobre o ex-dono do Banco Santos,
instituição que, falida, deixou – segundo o jornal - dívidas que à época
da falência somavam 2,5 bilhões. A matéria afirma que o ex-controlador do
Banco foi obrigado a deixar a mansão em que morava com a mulher porque não paga
o aluguel (R$ 20 mil mensais) desde 2004, em dívida que já chega a R$1,7
milhão.
III – É ainda na página 32 que encontramos a demissão da presidente
da GM do Brasil, que, segundo especula a reportagem, poderia ter-se dado por
uma falta de habilidade da demitida para” lidar com os vultosos investimentos
anunciados pela marca há três anos”, ou , talvez, pela “defasagem da linha de
automóveis, consequência da crise do grupo nos EUA”.
IV – Na página RIO – 15, o assunto é a SuperVia, concessionária dos trens que
servem à população do Rio de Janeiro, que está sendo multada diariamente porque
paralisou as escadas rolantes das suburbanas estações do Méier e de Madureira,
com todos os transtornos daí decorrentes para os usuários, alegando,
preconceituosa e discricionariamente, que , para o retorno ao
funcionamento das escadas , será necessária “uma mudança nos padrões culturais
da população, reeducando-a a preservar o patrimônio público”...
V –
Na página 14, em matéria que tem como manchete “Assim no plano como no SUS”,
afirma-se, entre outras coisas, que o drama de “emergência lotada, demora no
atendimento, pacientes revoltados que abandonam o hospital, cansados de
esperar” , que sempre tipificou o serviço público de saúde, “tem mudado
de endereço”, já que os hospitais privados padecem exatamente dos mesmos
problemas, havendo até depoimento de diretor da CREMERJ que afirma que o
atendimento está mais rápido na rede pública e demorado na area privada, como
um todo.
VI –
Na página 39, dedicada à “CIÊNCIA”, trata-se do impasse sobre inibidor de
apetite, droga banida nos EUA como maléfica à saúde e cuja proibição no Brasil
está provocando polêmica. São denominados tecnicamente “anorexígenos
anfetaminicos”, que a ANVISA quer tirar do mercado como medicamentos de risco,
pílulas causadoras de doenças. Claro que há posicionamentos contra a proibição,
alguns alegando que os remédios ajudam os obesos. Mas também é óbvia a
inferência que se pode tirar a respeito dos interesses dos laboratórios envolvidos...
VII – Na
página 34 de ECONOMIA, a notícia vem da China e dá conta de que operários
chineses da empresa Wintek, produtora de telas sensíveis ao toque para os
aparelhos da Apple, estariam submetidos a envenenamento químico causado
pelo hidreto de hexila usado na fabricação dastouchscreens. Segundo alegação
ali mencionada, a empresa não teria indenizado corretamente os afetados,
pressionando-os ao abandono do emprego sem garantias quanto ao tratamento
médico.
São fatos
pinçados de uma única edição de um jornal diário. São fatos que fazem parte de
um conjunto de muitos fatos do gênero, que povoam o cotidiano da matéria
jornalística. Eu poderia acrecentar aqui, em termos gerais, as pesquisas que
dão conta de que o maior nível de insatisfação do consumidor quanto à qualidade
do atendimento aos seus problemas de usuário corre por conta das empresas de
telefonia celular. Poderia também lembrar que, na maioria dos escândalos que
envolvem autoridades públicas com corrupção, estão por trás as grandes empresas
privadas corruptoras, sobre quem se cala, normalmente. Poderia também, se
quisesse aprofundar essa abordagem, lembrar que o mundo foi jogado
recentemente em uma crise colossal, da qual os grandes países ainda não se
recuperaram, em razão de problemas havidos com majestosos redutos da
iniciativa particular, os bancos.
São as
mazelas da iniciativa privada, pilar da sociedade de mercado, fundada no lucro
a qualquer preço. É bom, de quando em vez, refletirmos sobre isso...
Sobre o autor deste artigoRodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.
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