domingo, 6 de março de 2011

Ninguém faz política sozinho.

Do Brasil de Fato

O pão e o divertimento

Na época atual, a política se tornou um território delicado 
03/03/2011
Leandro Konder
  
Ninguém faz política sozinho. Os sujeitos que decidem intervir na história sabem que o impulso histórico de mudar o mundo depende de muita luta de sofrido processo de desenvolvimento, de análises e intuições e também de convicções.
Mesmo os antigos ditadores que marcaram a época no início do século 20 – tipo Hitler ou Mussolini – cultivavam o apoio das mesmas massas que eles tratavam com aspereza retórica e reprimiam, enchendo as cadeias de seus países.
Mais modernamente, esses ditadores e seus assessores têm diminuído o recurso à brutalidade assumida e oferecem a seus seguidores discursos mais sofisticados, flertando com o liberalismo. Agora mesmo nossos jornais estão cheios de notícias que se constroem em torno de uma aguda percepção de que os ideais políticos libertários podem ser proclamados sem que sejam realizados.
Quando vemos recentemente no norte da África manifestações da profunda mistificação efetivada por diversos Estados, podemos sempre nos apoiar em uma metodologia não corrompida e enxergar a mentira com que o Ocidente saudava o discurso liberal e reprimia a esquerda nesses países. Mubarak e seus congêneres não se tornaram antidemocratas de uma hora para outra. Há muitos anos eles já eram de direita.
É constrangedor para nós a imagem de um movimento social de inspiração mulçumana e cristã e notar que a amplitude dessa mobilização não corresponde às verdadeiras lideranças, capazes de encaminhar choques e definir os limites dos acordos.
Os antigos romanos influenciaram muita gente com ideias pragmáticas e truculentas, que convenciam as pessoas de que os movimentos sociais derivavam das necessidades econômicas e do vazio político.
Se essa ideia fosse correta, a massa trabalhadora, ao sair de casa para enfrentar a dureza do trabalho, ilustraria o pensamento conservador e as imagens que ele difundia: a maneira de aquietar a multidão seria dada por duas esmolas típicas do império romano, isto é,panis et circenses (comida e divertimento).
Um senador romano tradicional acrescentou a essa expressão cínica uma observação sarcástica: “se a situação for perigosa para nossas conveniências políticas, podemos reduzir o panis e eliminar o circenses.
Na época atual, a política se tornou um território delicado. Seus teóricos ensinam que debates e controvérsias devem ser evitados quando questionam valores que estão, por assim dizer, no núcleo da democracia. O resultado desse movimento é a proliferação de questões teóricas pouco importantes e o quase abandono das questões cruciais da história dos ideais democráticos.
Na democracia, aparece com nitidez a chamada questão social. O compromisso democrático vincula o projeto de uma nova sociedade tanto à criação de novas bases sociais como à defesa das liberdades.
A democracia, como sabemos, se baseia em um movimento teórico e prático que repele o programa político liberal, a partir do momento em que o liberalismo se mostra insensível às frustrações da classe trabalhadora.
Nas circunstâncias atuais, para o bem ou para o mal, a derrota histórica do socialismo trouxe como consequência a exclusão da sofisticação com que os socialistas atuavam politicamente em ligação com as preocupações liberais. Os liberais, por sua vez, chegaram a dispensar, como interlocutora, a perspectiva dos democratas e dos socialistas.
Uma das razões pelas quais podemos prever que as próximas décadas, no Brasil, serão tumultuadas, talvez venham a ser compreendidas e trabalhadas pelos nossos sucessores. Esperamos que eles, ao avançar, tragam os conhecimentos científicos que, ao mesmo tempo, nos ajudam e nos frustram.

Publicado originalmente na edição 417 do Brasil de Fato

Nenhum comentário:

Postar um comentário