quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A INFÂNCIA ABANDONADA

Por Lola Aronovich, em seu blog

GUEST POST: A INFÂNCIA ABANDONADA

Uma leitora que vai se manter anônima deixa aqui o seu relato. Escrevo algumas palavras no final. 

Sou nordestina do interior de Pernambuco, somos em três irmãos. Quando eu tinha 10 anos de idade minha mãe desencarnou vitimada por um câncer e deixou 2 filhos pequenos: eu com 10 anos, e um irmão com 7. Bem, aí começa minha saga. Meu pai, que era alcoólatra, nos deu para estranhos como se faz com filhotes de animais. Eu fui dada pra uma mulher que precisava de uma pessoa pra trabalhar na casa dela. Na minha região era comum as pessoas pegarem as órfãs para trabalhar, e não pra criar e cuidar. Fiquei nessa casa por um tempo, mas cansada de apanhar e ficar sem comer (trabalhava o dia todo e só comia uma vez ao dia), fugi de lá e voltei pra minha cidadepegando carona. Quando cheguei em minha cidade fui em busca dos parentes e todos me viraram as costas, inclusive minha irmã mais velha que era casada e estava esperando o primeiro filho. Sem ter onde dormir, fui pedir abrigo na casa de um primo que tinha crescido na minha casa e ele me acolheu contra a vontade da mulher dele. Passei uns dias ali e foi nesse período que meu tio que morava em São Paulo chegou pra visitar a família e resolveu me trazer pra SP. 
Dias depois de ter chegado em SP, meu tio aproveitou uma saída da mulher e me pegou na cozinha. Entrei em desespero, mas ele me disse que eu era muito bonita e que se eu me comportasse enão contasse nada pra mulher dele eu ia me dar muito bem, mas se eu contasse alguma coisa ele ia ter que me expulsar da casa dele, e eu estava muito longe da minha cidade e não conhecia ninguém ali, então o que eu ia fazer? Fiquei na casa desse tio servindo de empregada pra mulher dele e de amante pra ele. Era uma situação muito dolorosa pra mim porque eu tinha muito nojo dele, mas era forçada a viver isso, pois não tinha mais mãe e meu pai não queria saber de mim, e pra piorar eu estava numa cidade grande e não conhecia ninguém. Sofri essa agressão por meses a fio e então menstruei pela primeira vez. Aí pensei: agora ele me deixa em paz! Ledo engano. Ele comprou anticoncepcional e me forçava a tomar pra não engravidar. Eu que sempre fui alegre e extrovertida me tornei uma menina calada que chorava por qualquer coisa, mas ninguém me dava atenção. Passado um tempo longo, meu primo, filho desse tio, descobriu o que o pai dele fazia comigo. E resolveu que também tinha direitos sobre mim e passou a fazer o mesmo, eles se revezavam... Fui usada por eles durante muito tempo e nada podia fazer, pois sofria ameaças de ficar na rua e muitas outras coisas que prefiro não mencionar. Vivi um inferno por muito tempo, chorava todas as noites, chamava por minha mãe, pedia pra ela me levar com ela pois eu não suportava mais aquela vida. Com o tempo fui me tornando agressiva, principalmente com a mulher do meu tio ― ela me batia e maltratava mas não via, ou fingia que não via, o que ele fazia comigo .
Vivi isso por muito tempo até que eles me mandaram de volta pra minha cidade e lá passei por outras situações de estupro por homens da minha família e sempre me achei culpada por aquilo, sempre fui forçada a me calar e vivia com medo das pessoas. Cresci e aos 15 anos fui viver com um homem bem mais velho que deu sequência a esse horror. Tive dois filhos com ele e um dia criei coragem e o abandonei. Hoje tenho 35 anos, sou diabética, tenho depressão e síndrome do pânico, e não consigo me relacionar com homem nenhum, não acredito neles. Hoje sei que fui vítima e não culpada por tudo que me aconteceu. A ferida sarou mas a cicatriz é muito grande e vai existir pra sempre em minha alma. Procuro levar uma vida normal mas as pessoas não entendem como uma mulher jovem e bonita vive sem ninguém. Quando me perguntam isso eu sorrio e mudo de assunto, pois as pessoas são incapazes de entender as dores de uma vítima de estupro.
Obrigada por permitir que eu dividisse com você um pouco da minha vida.
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COMENTÁRIO DA LOLA
Eu aqui. Fico chocada com uma história dessas, que só reforça o quanto sou privilegiada por ter tido casa, comida, e carinho de pessoas que me amavam. É terrível imaginar uma criança de dez anos passar por isso. Bom, seria terrível pra qualquer idade, mas a gente vive num país em que menores de idade são protegidos pela Constituição. Como que uma criança pode passar por tudo isso, totalmente abandonada pelo Estado, como se estivesse naqueles orfanatos ingleses do século 19? Espero que essa situação, ocorrida duas décadas atrás, não seja mais tão corriqueira. Sabemos que a Bolsa Família e o desenvolvimento do Nordeste (grandes conquistas do governo Lula) acabaram com esse trabalho escravo de meninas serem dadas ou vendidas para trabalhar como empregadas, sujeitas a todo tipo de abuso dos patrões. 
No campo individual, é detestável notar que ninguém ajudou essa menina. Pelo contrário, todos se aproveitaram dela e perpetuaram o abuso. Quando li o relato pela primeira vez, na parte em que a leitora conta que seu primo descobriu o que o pai dele fazia com ela, eu respirei aliviada. Automaticamente pensei, condicionada por toda uma infância de contos de fada e príncipes encantados, que o primo a salvaria. Que a levaria pra longe de lá, que denunciaria o pai. Nunca, jamais, que ele acharia que também tinha direito de cobrar a sua parte. 
Aí a gente vê mais uma vez que príncipe encantado não existe. Mastemos o direito de exigir um Estado, se não encantado, pelo menos presente para proteger nossas meninas de gente muito, muito ruim.

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