Fátima Oliveira: No tempo em que a TV dava boa noite
Nas abas do mundo: no tempo em que a TV dava boa noite
Fátima Oliveira, em O Tempo
Médica – fatimaoliveira@ig.com.br
Meu avô Braulino, pai de mamãe, possuía uma terrinha nas imediações do Barro Azul, em João Lisboa (MA), aonde se chegava por uma picada na mata em que só passavam jeep, Toyota e caminhão madeireiro, o meio de transporte mais comum ali, e olhe lá! Com inverno rigoroso, só de burro, cavalo, jumento ou de surrão nas costas. Um doente só saía de lá na rede – pendurada numa vara nos ombros de dois homens que palmilhavam 50 quilômetros de estrada de chão até o primeiro socorro médico, em Imperatriz (MA). Muita gente morria na estrada. Em geral, grávidas, crianças e velhos.
Tal propriedade distava légua e meia da fazenda do meu marido, aonde o pai velho ia muito, a pé ou a cavalo, só para prosear e, às vezes, comer um tatu, um jabuti, um cabrito ou uma leitoa, pratos mais afamados. Naquela terra, ele pelejava, quase no fim da vida, nuns roçados de feijão, milho e arroz e negociando “legume na folha”: comprava a safra de outros camponeses antes da colheita, fornecendo dinheiro para o plantio, pois naquela época crédito rural era algo inacessível para a maioria dos camponeses.
Na época do plantio e da colheita, ele passava a semana por lá. Ia a Imperatriz aos sábados e domingos. Tal rotina foi interrompida quando um vaqueiro o encontrou estendido na estrada, desacordado. Era esperado para o almoço no Barro Azul. A tarde já se esvaía. Ele jamais faltava a um compromisso e, como não mandou avisar que não viria, meu marido mandou ver o que acontecera. Desde então, foi proibido por nós de fazer o que mais gostava: “Viver no mato só escutando macaco gritar e vendo preguiça se pentear”.
Em casa, ele implicava com tudo. A vida de vovó virou um inferno, só suavizada quando o levávamos para exposições agropecuárias, vaquejadas e assemelhados na região. Virou uma espécie de consultor de compras de gado e outros animais do meu marido, que só fechava o negócio depois do pai velho “assuntar” se era bom. Ele “dormia com as galinhas”, ou seja, cedo da noite, na toada da roça. Odiava TV. Vovó adorava ficar grudada na TV, que só desligava quando ela dava boa noite! É, houve um tempo em que a TV dava boa noite e encerrava a programação! Acho que era quando dava meia-noite.
Quando ele estava irritado, levar minhas crianças para a casa dele era um santo remédio. Cadeira na calçada, meninada em volta, apareciam os vendedores de picolé, geladinho, pipoca, amendoim torrado, castanha de caju, cuscuz Ideal, guaraná River gelado – refrigerante imperatrizense em garrafinhas de 200 ml – e o escambau. E ele a comprar! Dizia que era para as crianças, mas ele traçava de tudo. E não podia! Era diabético. “Passava a língua” na criançada para que não contasse à vovó que ele comia coisas doces. Ela ficava dentro de casa ouvindo novela no rádio, em que também era viciada!
Uns dois a três anos após o obrigarmos a viver na cidade, já demenciando, mal me via, pedia: “Minha filha, me manda para a roça, que isso aqui não é vida, pois essa mulher aqui vive de procurar homem na TV. Esses homens todos aí são xodós dela. Depois de velho, virei foi corno!”. Vovó, que se recusava a entender que ele não era mais a lucidez em pessoa, se exasperava: “Ah, é bom se deitar sozinho, né? Quem tem com que me pague não me deve nada! Depois de velho, quer se esquentar em minhas costelas, é ruim hein? Quando novo, selava o cavalo na sexta-feira à noite e caía nas abas do mundo, farriando nas quebradas com as quengas, e só aparecia no domingo à noite!”.
Doces lembranças…
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