sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

"A novidade não é a forma feminina (presidenta). A novidade é uma mulher no cargo"

Do Terra Magazine
PRESIDENTA?




A novidade não é a forma feminina (presidenta). A novidade é uma mulher no cargo
"A novidade não é a forma feminina (presidenta). A novidade é uma mulher no cargo"

"A novidade não é a forma feminina (presidenta). A novidade é uma mulher no cargo"

Sírio Possenti
De Campinas (SP)
Se eu pudesse decidir, com base apenas no meu gosto, Dilma seria chamada de "presidente". Mas quem disse que meu gosto é critério? E logo posso me acostumar. Porque língua funciona muito na base do costume.
Leio que ela voltou à carga. Que, tendo visto documentário com Pilar Del Rio, que insistia em ser chamada "presidenta" de uma fundação, avisou que quer esta forma de tratamento. Durante a campanha, as duas formas foram usadas, "presidente" e "presidenta", por ela e por outros, às vezes no mesmo evento, e até na mesma fala.
A novidade não é a forma feminina. A novidade é uma mulher no cargo. Chamá-la de "presidente" ou de "presidenta" se tornou um pequeno dilema, que lembra um certo rebolado que os outros candidatos tinham que encarar, antigamente, com Lula entre eles, nos debates: chamá-lo de "você" poderia parecer preconceito; chamá-lo de "senhor" parecia inadequado, já que era um operário (hoje quase todos se chamam de "você", mesmo se são doutores, e esta pode ter sido uma das consequências da popularização de certas candidaturas).
O principal argumento que tenho visto em favor da forma "presidenta" é seu registro nos dicionários. O argumento é que não está errado. Não só no Houaiss, bem recente, mas também no Aurélio e, pasmem, no Caldas Aulete. Digo "pasmem" não porque o registro da forma feminina nesse dicionário mais antigo seja de pasmar. Exclamo "pasmem" porque vi circular uma textinho, que teria sido baixado do Aulete digital, que ridicularizava a forma feminina de maneira francamente ridícula. O argumento era: se se diz "presidenta", por que não "contenta"? Mas isso não era nada: acrescentava-se que então também se deveria dizer "presidento contento".
Vejo na Internet que esse dicionário pode ser atualizado. Deduzo que o acréscimo em questão deve ter sido feito por um analfabeto. Pelo menos em morfologia e em lexicologia. Primeiro, porque os argumentos são elementarmente errados. Não é porque não se diz "gerenta" que não se diz "presidente" ou "parenta". No domínio do léxico, as irregularidades são muitas. E as formas se fixam ou não se fixam em razão do que uma sociedade considera necessidades. Mas, principalmente, do fato de que se diga "presidenta" não decorre que se diga também "contenta" e, muito menos, que se diga "presidento". Se todas as palavras masculinas devessem terminar em "o", teríamos que dizer "dar tiros derevólvero", "beber umas no baro", servidos por um "garçono", enquanto vemos um jogo de "futebolo". Ora!
Línguas levam os fatos rigorosamente a sério. Só se usa o que se usa. Em segundo lugar, no Aulete de verdade (quer dizer, na edição atualizada por Hamilcar de Garcia, porque o original é bem anterior), a forma "presidenta" está registrada. A edição é de 1974, bem antes da eleição de Dilma Roussef. O que está lá é: "Presidenta, s.f. (fam.). 1. mulher que preside; esposa de um presidente. // F. presidente". Esse "F" quer dizer "formação", ou seja, informa sobre a origem da palavra. "fam."
Se um argumento em favor da forma é seu registro em dicionários, é claro que o argumento contrário se valerá do mesmo critério de autoridade. Mas, como se vê pelo caso Aulete Digital, há autoridades bem questionáveis.
Outro argumento contrário ao uso de "presidenta" seria que se trata de um som horrível. Nossos ouvidos pedem "presidente", alega-se. "Nossos" de quem, cara pálida? O argumento me lembra o de uma gaúcha de Erechim chamada Sheila que disse ter gostado de Harry Potter, mas não da dublagem carioca, porque tinha muitos "x"... como em Sheila e em Erechim (trata-se do som, é óbvio!). Também me lembra dos que riem do francês que "faz biquinho", porque nunca se viram, ou nunca viram os outros, proferindo "oo" e "uu" em português.
Feminismo exagerado? Tem sido outro argumento. Apesar da antiguidade do Aulete, talvez valesse a pena chamar o velho Sigmund e perguntar-lhe se não há, escondida, alguma resistência às mulheres no comando, ou a uma mulher em particular. Pode ser tucanismo enrustido, pode ser ojeriza da política como tem sido feita. Razões nobres. Mas que se culpem os sons! Aposto que os que acham o som de "presidenta" horrível não têm nada contra "magenta", "setenta", "sedenta" ou mesmo "purulenta" e "polenta".

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.

Fale com Sírio Possenti: siriopossenti@terra.com.br

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