Carta aberta à Presidenta Dilma Rousseff
Lurildo R. Saraiva
Professor Associado de
Cardiologia da Universidade Federal de Pernambuco
Adital
Recife, 19 de maio de 2011.
Excelentíssima Senhora Dilma
Roussef,
Presidenta da República
Federativa do Brasil.
Prezada Senhora,
Antes de tudo, devo dizer-lhe
da honra com que me invisto neste momento em que, aos 64 anos de idade, como
médico e professor universitário há 40 anos, me dirijo pela primeira vez na
vida, à autoridade maior do meu país. É uma honra indescritível.
Eu o faço com autoridade,
pois, como Vossa Excelência, lutei contra a ditadura civilmilitar que nos
infelicitou durante longos 21 anos, não atingindo eu, de longe sequer, a
estatura que Vossa Excelência alcançou, ao sofrer torturas e manter-se digna e
honrada, jamais delatando os nossos companheiros. Mas, nessa luta adquiri
doença intestinal sem cura, que me limitará até o fim dos meus dias. Sofri
muito também.
Bem sei que a visão do mundo
que tem Vossa Excelência nos dias de hoje é um pouco diferente da que teve nos
primórdios de sua juventude. Eu, no entanto, trabalhando com oprimidos e
excluídos deste país, nesses anos todos, muito pelo contrário, solidifiquei
cada dia mais a crença de que somente uma sociedade de natureza socialista
produzirá paz e justiça no mundo. Cearense, da região do Cariri, onde reinou o
Padre Cícero, chegando ao Recife aos 14 anos, já sequioso de justiça social,
descobri que um dos homens mais ricos de Pernambuco era o Senhor Armando
Monteiro Filho, hoje, 50 anos depois, Senhora, um dos seus filhos mais ricos é
o Senhor Armando Monteiro Neto, amigo dileto do Presidente Lula. Quando aqui
vim, meninote, surpreendi-me ao ver morros desabarem por chuvas, matando os
infelizes habitantes de lugar tão impróprio à dignidade humana, hoje, após 50 anos,
os morros desabam e matam esses infelizes do mesmo modo. O que mudou,
Excelência, a riqueza e a pobreza não se encontram nas mesmas mãos? Recife
cresceu, sim, mas prédios se multiplicaram e enfearam uma das cidades mais
bonitas do Brasil, surgindo uma violência jamais vista nos anos 60, a luta de
classes a tomar aspecto dramático e por demais perigoso.
Vossa Excelência, com
justíssima razão, diz que o combate à miséria será um dos seus maiores
objetivos. Mas, Vossa Excelência sabe, muito mais que eu, que é da essência do
Capitalismo a produção de pobres e a corrupção. Nos Estados Unidos da América,
país capitalista exemplar, há 46 milhões de habitantes que dependem do bolsa
família daquele país, são desvalidos na nação mais rica do mundo, o que se constitui
uma ofensa ao Criador e Pai, como pregava Dom Helder Camara.
Senhora, eu trabalho com
crianças e adolescentes portadores de febre reumática nos anos todos da minha
vida de médico. Conhecida na França como "Maladie de Bouillaud”, quando
estive em Bordeaux, em 2005, os colegas ficaram estupefatos quando souberam que
minha Tese de Doutorado estudou esse mal, simplesmente porque ele inexiste
naquele país há mais de 30 anos, inclusive já não mais sendo ministrado no
currículo médico, não há mais necessidade, é coisa da História da Medicina na
França. Na Dinamarca, é de notificação compulsória desde 1860 - pense,
Excelência, 1860 - aqui no nosso país, por incúria do Ministério da Saúde, até
hoje não o é. E, no entanto, Senhora Presidenta, por complicações em valvas
cardíacas humanas, mata aqui em Pernambuco, e mata sem piedade. Cerca de um
terço das cirurgias valvares no Brasil são feitas em valvas danificadas pelo
reumatismo. O Ex-Ministro da Saúde, Senador Humberto Costa, foi meu aluno e
sabe disto, mas se omitiu.
Carrego no meu coração dezenas
de cadáveres de meninos, meninas, adolescentes, mortos no alvorecer da vida por
complicação de doença facilmente preventiva, por um Serviço de Saúde Pública,
que identificasse os casos, mudasse o estilo de habitação, proporcionasse na
própria residência a administração da penicilina regular que evita as recidivas
da moléstia, mapeasse os que moram nas vizinhanças, como se faz em Cuba e na
França. Entre nós, pelo contrário, dificultou-se o uso do antibiótico por "fantasias”
criadas a respeito do seu uso, entre elas, a de que "pode matar”, mas, tal
possibilidade, que nunca vi em 40 anos de vida profissional, pode haver em
0,02% das vezes, enquanto a ação protetora é de 97,5% - os números são
eloquentes, Senhora, eles falam por si.
A História lhe entregou,
Senhora Presidenta, em dois momentos da sua vida, duas missões raras e
singulares. Na primeira, tão jovem, Vossa Excelência se saiu com altivez e
honra, no combate aos tiranos de 1964. A segunda, a Senhora a recebe neste
momento. Compete-lhe, agora, Excelência, se desejar, mudar o destino trágico de
um povo sofrido, bom, amável, digno. O modelo econômico neoliberal é cruel
demais com os desgraçados, como os nomeava o grande Graciliano Ramos, e
enriquece em demasia os que já são ricos de nascença. Mude isto, Excelência,
que orgulho de semelhante ação da Senhora terão os nossos filhos e netos, os
nossos descendentes, como a História lhe louvará!
O mundo dos pobres em que
trabalho remonta, em vários aspectos, à Inglaterra descrita por Charles
Dickens, no século 19. O último paciente que perdi, Elvis Paulo de Andrade,
sabendo-me doente, ele próprio gravemente enfermo também, em mensagem,
disse-me: "Doutor, a sua dor é a minha dor; o seu sofrimento é o meu
sofrimento; a sua alegria é a minha alegria”. A nação perde um menino desses,
de tanta sensibilidade, no alvorecer dos seus melhores anos, aos 25 anos,
deixando sua mãe arrasada, pois que lhe era seu único filho homem, ajudando-a
com o salário mínimo, que eu lhe conseguira pelo INSS. Sinto esgotar a minha
capacidade humana de ver e sentir tanto sofrimento, que eu sei de natureza
fundamentalmente sócioeconômica.
Vossa Excelência ama a obra de
Mozart. Então, Excelência, ouvindo o "Concerto número 21 para piano e
orquestra” desse gênio -dizem, a música preferida de Deus- leia e medite estas
palavras do inesquecível José Saramago:
"Penso que estamos cegos,
Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”
Com respeito e grande
admiração,
Lurildo Saraiva
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