domingo, 17 de julho de 2011

De autoestima, conhecimento e bem-viver

Por Selvino Heck
Assessor Especial da Secretaria Geral da Presidência da República
Adital



Seis da manhã, julho, frio de rachar ou de renguear cusco, como diria o gaúcho, uma neblina branca, densa, como se fosse no Rio Grande do Sul, vou para a biblioteca da Escola Florestan Fernandes, em Guararema, São Paulo. Encontro uns 20 jovens e lideranças dos cursos regulares do MST, livro à frente, estudando aplicadamente. Lembrei-me dos tempos de Seminário em Taquari, RS, quando, depois da ginástica matinal e da missa, e antes do café, tínhamos uma hora de leitura e estudo preparando o dia.

Realiza-se na Escola Florestan o V Encontro Macro-Regional Sudeste da Rede de Educação Cidadã, com cerca de 50 lideranças sociais, educadoras e educadores populares de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. O tema central é ‘Comunicar para avançar no Poder popular’, com subtemas como Projeto popular e Modelo de Desenvolvimento, Formação para a Comunicação Popular, e oficinas de como fazer um jornal popular, acessar e utilizar blogs e redes sociais, avançar na comunicação e apropriação da cidade.

Após ver coletivamente o filme "Un Poquito de tanta Verdad’, sobre uma histórica greve de professores na Província de Oaxaca, sul do México, em 2006, que conquista apoio da comunidade, ganha repercussão nacional e coloca em xeque inclusive o governo federal, diz Tatiana, educadora do Rio: "As pessoas querem aprender, mas estão com a auto-estima baixa. A melhor forma de passar auto-estima é passar o conhecimento. Sem conhecimento não há auto-estima. Eu procuro melhorar a auto-estima em toda minha ação de formação. As pessoas acham que não fazem parte daquilo. A auto-estima está ligada ao sentimento, a pertencer. ‘Eu pertenço, então eu posso’. Como diz o poema do Vinícius, Operário em Construção, quando a pessoa se apropria do saber, ela passa de construído a construtor. Não é uma questão de 2 + 2 é 4, mas de saber onde se quer chegar. Por isso, é preciso resgatar o valor das mulheres, que são muito massacradas”.

O debate estendeu-se sobre os projetos de desenvolvimento e as experiências de luta e resistência, a partir do vídeo ‘Da Margem ao Centro’, do PACS do Rio de Janeiro, onde aparecem depoimentos de pescadores, de moradores das ilhas que estão tendo cada vez mais dificuldade de pescar, de comer ou comercializar os peixes que pescam, sofrem os efeitos da poluição, porque grandes usinas siderúrgicas que precisam de portos estão chegando, ou até mesmo são expulsos dos lugares onde moram há muito tempo. Diz Marcos Arruda, do PACS, no vídeo: "A palavra desenvolvimento hoje diz respeito a bens materiais, quando, originalmente, dizia respeito ao desenvolvimento dos potenciais das pessoas. O grande objetivo do desenvolvimento deve ser a felicidade”.

Fala Jardson, pescador de caiçara da Praia do Sono: "Eles fazem marina e a gente tem que sair. A gente tem que se adequar às regras deles. Será que eles têm mais direito que nós? Nós caminhamos aqui há 400 anos. Eles, menos de 30.” Ou nas palavras de seu Erasmo, pescador da Pedra de Garatiba, Baía de Sepetiba: "A ciência da vida e da letra são duas culturas maravilhosas. A ciência da vida nasce nas ilhas e na roça, que aprendi de meus pais.” Ou o pescador Ivo, do Sertão de Taquari, Paraty: "Eu tenho a maior das fortunas: liberdade e o respeito das pessoas”.

Aí volta a Tatiana: "Temos plena consciência de nossa importância de sermos educadores e de nossa responsabilidade. Nunca podemos esquecer de nossa força, do nosso poder popular. Na verdade, somos o quarto poder. Não podemos esquecer disso. Há um tripé, formação, articulação e luta, que nos orienta. Vamos lembrando a alegria quando nos trabalhos com os grupos de base alguém consegue entender. Não esquecemos do nosso compromisso com a vida, o meio ambiente”.

Raquel e Cláudia falam do trabalho da Rede de Educação Cidadã em Ribeirão das Neves, MG, e do lema que as orienta: "Nós amamos Neves”. E Isabela, do Espírito Santo, lembra que o bem-viver, da raiz indígena, do cuidado, do homem integrado ao meio ambiente, a natureza como bem coletivo, não apenas servindo-se deles, implica em solidariedade, em partilha, em querer o bem dos outros.

Olhando o mundo de hoje, as crises, os valores dominantes, não há outra conclusão a não ser que é preciso mudar de rumos. O conhecimento não pode mais ser oferecido a poucos ou estar a serviço para o lucro de meia dúzia que constrói suas marinas e condomínios e não permite à maioria do povo manter sua cultura e respeitar sua cultura comunitária e de sobrevivência.

Povo com auto-estima é povo feliz, é povo que sabe seu destino. Pode pensar e propor um projeto de desenvolvimento em outras bases do que estamos vendo hoje no mundo em crise. Porque sabe que o saber deve ser de todas e todos, tem coragem e ousadia de estudar e aprender no frio das seis da manhã a sua própria história e os caminhos que deve seguir. Não é mais tempo de tutores ou iletrados. É tempo de partilha e de construção coletiva.

Em quinze de julho de dois mil e onze.

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