quinta-feira, 21 de julho de 2011

Outro mundo possível (I e II)

Do Adital
‘Outro mundo possível’ é possível?(II): eficiência e o social
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital

Eu terminei o artigo anterior afirmando que argumentos teóricos "a priori” –como, por exemplo, a negação da eternidade ou imutabilidade da atual ordem mundial– são necessários, mas não suficientes para mostrar a plausibilidade de um outro mundo e, ao mesmo tempo, motivar as pessoas a se engajarem neste luta. Por isso, é necessário refletir um pouco sobre as experiências históricas de ”outro mundo possível”.

Desde meados do século XIX até o final do século XX não havia dúvida de que o mundo poderia ser organizado de, pelo menos, duas formas: a capitalista e a socialista-comunista. É só depois da queda do bloco socialista, no final da década de 1980 e início da de 90, que toma força a idéia de que não há alternativas ao capitalismo. Por isso, é importante discutirmos aqui rapidamente as principais diferenças de organizar a sociedade no capitalismo e no socialismo.

Todas as sociedades humanas precisam resolver algumas questões básicas para a sobrevivência da sua população. Um setor fundamental é a produção e distribuição de bens materiais necessários para a reprodução da vida corporal, o campo da economia. Aqui entra a produção e distribuição de, por ex., alimentação, água potável, proteção contra intempéries do clima (roupas e habitação adaptadas às variações climáticas), segurança contra as ameaças que vem da natureza e de outras espécies de animais.

Na medida em que nenhum indivíduo consegue produzir todos esses bens necessários para a sua sobrevivência, a vida só é possível dentro de uma comunidade ou de grupo social. O conjunto de trabalhos necessários para produzir a "cesta básica” é dividido entre seus membros e surge então o desafio de coordenar esta divisão social do trabalho de tal forma que cada processo de trabalho se articule com outros e forme, ao final, um sistema que seja capaz de produzir, pelo menos, o mínimo necessário. Este processo de coordenação inclui também o processo de decisão sobre o que, quanto, como e para quem produzir.

Se a produção ficar abaixo do mínimo, –seja pela "pobreza” do meio ambiente, deficiência tecnológica ou problemas na coordenação e decisão– a fome é inevitável, pelo menos para uma parcela do grupo. A eficiência produtiva –o uso eficiente dos meios disponíveis para produzir os bens necessários– e a correta ou justa distribuição dos frutos do trabalho se tornam questão de vida e morte para os membros da comunidade.

O mundo moderno se diferencia do mundo feudal pela busca consciente e sistemática do desenvolvimento tecnológico no campo produtivo, do aumento da divisão do trabalho (aumento da especialização) e comércio de longa distância (ampliação do sistema econômico). Com isso, a noção de eficiência produtiva e aumento da riqueza passaram a ser fundamental na sociedade, acima das noções de honra ou deveres para com a família.

O capitalismo "nasce” neste processo impondo o mercado como o principal, se não o único, coordenador da divisão social do trabalho. As perguntas "o quê, como, quanto e para quem” produzir deveriam ser respondidas pelo mercado. Isto é, –como dizia um famoso economista, Paul A. Samuelson–, as mercadorias devem ir para onde há mais "votos” em dólares. Por isso, leite pode ir para cachorros de Rockfeller, ao invés de uma criança pobre desnutrida, porque é lá que há mais votos atraindo o leite. Samuelson reconheceu que isso era terrível em termos éticos, mas que era a forma mais eficiente de organizar a economia complexa. E contra a eficiência econômica não há argumento!

Marxismo e socialismo são reações a isso propondo uma forma "racional” de organizar a economia, ao invés de sermos submetidos aos caprichos do mercado. Após a revolução soviética, essa "forma racional” foi entendida como planejamento centralizado de todas as atividades econômicas pelo Estado comunista. Assim, leite iria para a criança desnutrida por mais que um rico quisesse dá-lo para seu cachorro. O atendimento das necessidades sociais seria colocado como o objetivo final da economia, e não mais o aumento da riqueza; por isso, social-ismo. Essa foi a principal razão para que tantas pessoas de mundo inteiro aderissem com tanto entusiasmo à proposta socialista.

Num artigo curto, não é possível aprofundar as razões do por que o bloco socialista caiu, mas é possível dizer que a situação social das primeiras gerações pós-revolução de países socialistas, como Cuba, melhorou significativamente, especialmente para os mais pobres. Entretanto, o tempo mostrou que planejamento centralizado de todas as atividades econômicas pelo Estado é insustentável a médio e longo prazo por conta do aumento da ineficiência e da incapacidade de atender de modo eficiente as novas necessidades e desejos pessoais e sociais que surgem após a satisfação das necessidades básicas.

Por isso, é preciso aprender com experiências históricas para ver quão "outro”, quão diferente do mundo que vivemos hoje, pode ser a outra sociedade possível. (a continuar)

[Jung Mo Sung, autor, junto com Hugo Assmann, do livro "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Paulus. twitter: @jungmosung]

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‘Outro mundo possível’ é possível?
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital


Após a queda do bloco socialista e a aparente vitória "final” do capitalismo, a afirmação de que "outro mundo é possível” se tornou uma forma de expressar a resistência à ideologia neoliberal e à atual globalização capitalista. Para muitos, a afirmação por si seria um tipo de comprovação de que outro mundo é possível. Porém, penso que é importante refletirmos um pouco sobre como mostrar a plausibilidade deste outro mundo.

É claro que para os já convencidos não há necessidade desta discussão, porém é preciso reconhecer que a maioria da população continua pensando que não há alternativas. Afinal, o poder e a capacidade de sedução dos meios de comunicação estão aí para, entre outras coisas, vender essa ideia. Por isso, é fundamental para a "esquerda”, cristã ou não, que mostremos a plausibilidade da afirmação "outro mundo é possível”.

Para o início da conversa, é importante reconhecer que o simples desejo de que outro mundo seja possível não serve de argumento para "comprovar” que este outro mundo realmente chegará a existir. Além disso, na afirmação "outro mundo é possível” o acento está na possibilidade de uma alternativa, mas não há uma explicitação de como seria este outro mundo. Tratando-se do desejo, é claro que, sob a expressão "outro mundo”, vamos encontrar imaginação de um mundo quase que perfeito, se não perfeito, onde a descrição se dá muito mais em termos das realidades que não existirão (mundo sem exploração, sem opressão, sem injustiça etc.) ou em termos qualitativos (harmonia, solidariedade...). Muito pouco aparece da descrição dos mecanismos sociais e institucionais de produção e distribuição dos bens econômicos e das relações de poder e leis na esfera pública e estatal.

A afirmação de que outro mundo é necessário também não é suficiente para mostrar a plausibilidade, pois a afirmação da necessidade pressupõe o raciocínio de que, se outro mundo não surgir, a humanidade irá desaparecer ou entrar em profundo caos. Isto é, para que o mundo humano não entre em caos, é necessário um outro mundo. Porém esta necessidade não é garantia da realização, mas sim uma condição para que o caos não se estabeleça. As pessoas podem muito bem pensar que não há alternativa e que devemos nos preparar para o caos ou que a possibilidade do caos é apenas uma chantagem dos alarmistas. Alguns, especialmente cristãos conservadores fundamentalistas, podem até pensar que o caos previsto seria o Armagedon, sinal de que o final dos tempos está chegando e, com isso, a volta triunfal de Jesus. Portanto, deveríamos esperar ansiosamente por este caos final.

Já que o simples desejo e a afirmação da necessidade não são suficientes para mostrar a plausibilidade do outro mundo possível, precisamos apresentar outros tipos de argumentações. O primeiro pode ser a afirmação de caráter metafísico de que nenhum mundo ou civilização são eternos. Só Deus é eterno e todo o mais é passageiro ou contingente. Assim, mostramos que o sistema capitalista atual também passará. Esta é uma afirmação importante porque é da característica de todos os Impérios afirmarem-se como eternos. Isto é, em termos cristãos, a idolatria de se apresentar como expressões históricas de Deus ou do Reino de Deus.

Entretanto a afirmação da contingência do atual Império (não o norte-americano, mas do sistema capitalista global) é uma condição necessária, mas não suficiente para mostrar a plausibilidade de outro mundo melhor do que atual. Muito menos para motivar as pessoas a se engajarem na luta por este outro mundo.

Um outro argumento usado no campo religioso é de que o "mundo justo” é promessa de Deus, que nos pede para lutarmos por este outro mundo. No caso do cristianismo de libertação, textos bíblicos, especialmente dos profetas, são citados para "comprovar” como Deus se revela no mundo anunciando este outro mundo. Porém, este tipo de argumento só funciona junto às pessoas que compartilham a mesma fé e o mesmo tipo de leitura bíblica ou de outro livro sagrado. Além disso, se é verdade que textos sagrados revelam, não somente a vontade de Deus, mas a garantia da realização do outro mundo, muitos poderiam perguntar por que após mais de dois mil anos essas promessas ainda não se realizaram.

Essas reflexões nos mostram que argumentos teóricos "a priori” são necessários, mas não suficientes –se é que existem– para mostrar a plausibilidade e, ao mesmo tempo, motivar pessoas a se engajarem na luta. Precisamos então voltar nossos olhos para experiências históricas. (A continuar...)

[Autor, junto com Hugo Assmann, do livro "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Paulus. Twitter: @jungmosung]

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