terça-feira, 12 de outubro de 2010

Liberdade, liberdade, abra as asas sobre nós!

Por Lola Aronovich, em seu blog

BOLSA-FAMÍLIA, EMPREGADA E ABORTO

No post sobre normalidade, a questão do aborto veio à tona noscomentários. E minha leitora Babsiix escreveu:

Lola, eu acho que essa questão do aborto é parecida com as bolsas dadas. Explico-me: a ideia de dar dinheiro é pra tentar diminuir as diferenças, ajudar quem não tem ou só tem dinheiro pra (mal) comer. Assim os pais podem comprar um brinquedo pros filhos, roupas, ter condições de dar um doce quando a criança pedir... Além do básico: pagar contas, ter um lugar pra morar, e feijão e arroz na mesa. Quando estava no colégio, uma professora contou a história da empregada dela, que resolveu se demitir porque fez as contas e viu que dava pra sobreviver, mesmo apertadinho, com o dinheiro que era recebido da bolsa. Sabe, isso me deixa meio triste, sem esperança que as coisas melhorem, porque tenho certeza que essa situação se repete. Entendo que a ideia seja boa, e acho louvável tentarmos diminuir as diferenças. Mas na prática... parece que as pessoas não entendem pra que serve aquele dinheiro. Agora quanto ao aborto: sim, se a mulher quiser abortar ela vai dar um jeito, em clínicas clandestinas e sem cuidado algum. E sim, a saúde e a integridade da mulher são questões importantes, logo a legalização é algo bom. Entendo que as mulheres não gostam de abortar. Sei que vou soar arrogante, mas lá vai. Tenho quase certeza que a legalização do aborto, que visa proteger as mulheres, vai ser usada de forma banal, já que será visto como "menos uma consequência a se arcar com o não-uso da camisinha". Como a bolsa, são recursos para serem usados de forma consciente, o que na prática não acontece. 

Babsiix, a empregada da sua professora decidiu usar o benefício pra “sobreviver”, e ainda assim você acha que “as pessoas não entendem pra que serve aquele dinheiro”? “Sobreviver” me parece um bom uso pro dinheiro. Eu ouço bastante essa queixa vinda de gente de classe média: “minha empregada não quer mais trabalhar”. Minha dúvida é: as pessoas que reclamam disso gostariam de ser empregadas? A maior parte das pessoas que recebe auxílio adoraria trocar de vida com as pessoas de classe média, ainda que fosse pra ter a vida sofrida e trabalhadora e cheia de sacrifícios que, aparentemente, só a classe média tem. Você não acha que se, de repente, o salário que se paga a uma empregada está muito próximo ao valor do auxílio, o problema está no salário, não no auxílio?
Outra coisa que vivo ouvindo é que “país civilizado é outra coisa”. A classe média brasileira (no que é idêntica à classe média de outros países pobres) só falta babar ao elencar as qualidades dos EUA. Lá não ocorrem as barbaridades que ocorrem aqui, pensa essa classe. É um ledo engano: ocorrem, sim. Mas sabe o que realmente não tem nos EUA com a frequência que tem aqui? Empregada doméstica. Elas são muito caras pra uma família de classe média conseguir pagar. E isso da empregada morar na casa da família e trabalhar dia e noite, seis dias por semana, com uma folguinha “quando der”, simplesmente não existe. Nos EUA não tem quarto de empregada. Sabe, esses cubículos sem janela onde só cabe uma cama em pé e que nossos respeitáveis arquitetos decretam que todo lançamento imobiliário deve ter? Lá não tem. Americano de classe média pode até ter uma diarista pra limpar a casa uma ou duas vezes por semana, mas uma escrava doméstica é inviável. Vamos chamar as coisas pelo que elas são: é escravidão sim. Uma mulher pobre ter que abandonar sua própria família pra cuidar da dos outros, não ter vida além do trabalho, ter um emprego sem perspectivas, que pague um salário minúsculo, e precisar andar pelo elevador de serviço pra não se misturar com os patrões da casa grande? Sei não, tirando a parte do salário, parece bem parecido com o que sei sobre escravidão. 
E aí a gente condena quem tenta sair dessa vida? Tem que fazer malabarismo pra sobreviver com bolsa-família. Se um salário mínimo (que vem obtendo aumentos reais no governo Lula, e agora irá pra R$ 465 - pouquíssimo ainda, mas compare com os números do FHC) não cobre tudo isso que você falou, duvido muito que com a bolsa-família dê pra pagar aluguel, comida, roupas, transporte e ainda sobre pra comprar doces e brinquedos pro filho. Pessoas contra o auxílio criticam que alguns pobres comprem eletrodomésticos (em 24 prestações. Só classe média deveria poder comprar máquina de fazer pão, né?). Mas não há dúvida que o bolsa-família está injetando dinheiro na economia e contribui para que muita gente tenha melhorado de vida. O indicador que pela primeira vez na história 52% da população brasileira é de classe média já diz tudo. E não sei se você lembra quando, no início do governo Lula, período em que os benefícios foram ampliados, houve alegações de que esses pobres não eram de confiança, que os homens iam gastar tudo em cachaça, e que o melhor seria pagar o benefício à mulher da família. Puxa, parece que os pobres são mais inteligentes do que pensávamos.
Aí você emenda esse assunto com a legalização do aborto. É, sem dúvida, uma ligação perigosa, porque esses temas costumam andar juntos desde a invenção da eugenia, lá por 1880. Os princípios são os mesmos: pobres, mulheres, negros, pessoas com desabilidades etc são seres inferiores, que não conseguem cuidar de si próprios. É pra melhorar a vida deles que o homem branco de classe média e alta interfere, tão altruisticamente. O homem branco sabe que pra mulher negra é ótimo trabalhar de escrava em sua casa! É pro seu próprio bem. Como seres inferiores, essas minorias são incapazes de tomar decisões conscientes. Por que, então, deveriam poder reproduzir? É ruim pra espécie humana! Só a classe média deveria ter filhos. Falando em reprodução: a gente reproduz o mesmo discurso do nazismo e nemfica corada!
Quando a gente fala em legalizar o aborto, está no fundo falando das mulheres pobres. Mulher de classe média pode pagar uma clínica onde não corra risco de vida ao abortar, certo? Nos países onde o aborto foi legalizado, não houve nenhuma explosão no número de abortos, apenas despencou o número de mulheres mortas em consequência de abortos malfeitos. Aborto não substitui métodos anticoncepcionais de forma alguma. É um procedimento doloroso e traumático, e a maior parte das mulheres sabe disso. Não dá pra pensar que alguma moça vai falar pro parceiro: “Não vamos usar camisinha hoje. Se eu engravidar, faço um aborto e tá tudo bem”. É fato, infelizmente, que muitas mulheres - de todas as classes sociais - se preocupam com o prazer do parceiro em primeiro lugar. Somos criadas para sempre pôr a felicidade dos outros antes da nossa, e pra não discutir muito. Logo, se um parceiro diz que camisinha atrapalha mas que não tem problema não usar, porque ele “tá limpo” e vai gozar fora, várias mulheres acatam. Eu tive muitos parceiros sexuais durante a minha adolescência, nos anos 80, e era raríssimo algum que tomasse a iniciativa de usar camisinha. Se eu não exigisse e fincasse o pé, eles não estavam nem aí. E, adivinhe? Eram todos de classe média. 
Acho incrível como os homens costumam se manter à margem dessa discussão, como se mulher engravidasse sozinha. (Perceba nas campanhas anti-aborto como a mulher desaparece. Esta ao lado diz: "Assim que é concebido, um homem é um homem". Umhomem, não uma mulher. E quem assina a pérola? O pai da genética moderna, sucessor direto da eugenia!). Homem em geral só aparece pra dar pitaco contra o aborto. Lógico: não é ele que vai ter que parar de estudar ou trabalhar pra se dedicar ao bebê. Sinal de que o machismo segue forte na nossa sociedade é que aresponsabilidade pela gravidez ainda recaia inteiramente sobre a mulher. A falta de educação sexual contribui, lógico. Muita gente não tem a menor ideia de como se engravida ou dos métodos anticoncepcionais possíveis. E muitos desses métodos estão disponíveis em postos de saúde. Tem quem ache que não se engravida na primeira transa. E tem a teoria da infalibilidade dos jovens, que pensam que as coisas ruins (e gravidez precoce é algo ruim) não acontecem com eles, só com os outros. Tem casalzinho apaixonado que pensa que o amor vai triunfar acima de tudo, que o amor é antídoto contra gravidez e Aids. E é óbvio que essas crenças não são privilégio dos pobres. Quando o sexo for encarado com mais naturalidade, como algo que todo mundo faz e é bom (e, portanto, vamos fazer do jeito certo, que é se cuidando), não como um tabu ou motivo de vergonha pra mulher, os casos de gravidez indesejada e de abortos vão cair. Enquanto isso, legalizar o aborto é uma questão de justiça social. De dizer pra mulher pobre que ela também tem o direito, como a mulher rica, de interromper uma gravidez. Isso se ela quiser. A decisão deve ser dela. Não de alguém de classe média que, no fundo, vê a pobreza como algo positivo. Porque, se os pobres acabarem, aí sim vai ficar difícil encontrar empregada doméstica. 

Post publicado originalmente em 29/01/2009

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