domingo, 17 de abril de 2011

O que querem sempre os ideólogos do capital e do mercado: despolitizar

A propaganda das raposas

Por Rodolpho Motta Lima
Uma das tendências de um certo segmento que finge não fazer política em nosso país é a de desqualificar o debate ideológico, privilegiando sempre as pessoas envolvidas e raramente os processos que as envolvem. Quando o assunto tem a ver com fraudes, falcatruas, corrupção, demonizam as pessoas corrompidas, mas raramente vinculam os fatos a uma ideologia dominante que, fundada no lucro e no egocentrismo, estimula a sede dos ganhos ilícitos. Seria leviano eu dizer aqui que o roubo é exclusividade do capitalismo, mas que o ambiente é propício, isso é...

Mas não creio que essas posturas, de privilégio do individual, existam apenas para esconder o processo que vincula as pessoas e seus atos. Penso que, no caso, há , paradoxalmente, admitam ou não os seus atores, um forte viés ideológico. A nova indumentária da direita (não tão nova assim, reconheçamos) passa por essa roupagem que tudo centraliza no “eu”, para o bem ou para o mal.

Para os ideólogos do capital e do mercado, é óbvio que não pode nem deve haver um organismo estatal forte, que faça dos programas sociais o seu móvel maior, que rejeite as privatizações oportunistas (pois há as que se justificam), que enxergue o plural na frente do singular e não queira deixar simplesmente ao sabor de uns poucos especuladores multimilionários o destino dos componentes da sociedade como um todo.

Essas considerações vêm a propósito dos debates que estão sendo sugeridos a respeito do que seria, de fato, em uma sociedade democrática, a defesa dos direitos do cidadão e, dentro disso, do maior deles: a liberdade. É um debate importantíssimo, e dele não devemos fugir.

Em primeiro lugar, penso que não se deve confundir liberdade com egocentrismo. É muito antiga e sábia a afirmação de que a liberdade de um indivíduo esbarra nos prejuízos que pode causar ao semelhante, no plano pessoal ou social. Ultimamente, a grande mídia tem repercutido seminários e alugado colunas para bater na tecla de liberdades que estariam sendo arranhadas, ameaçadas ou suprimidas em nosso país, por força da ação do Estado. Será?

Para os arautos desse “perigo” , parece, qualquer intervenção do Estado no ambiente social deve ser combatida como espúria. Questionam-se, por exemplo, as intervenções das agências reguladoras em defesa do interesse público como se fosse uma restrição às liberdades democráticas. Assim, se se pretende limitar os anúncios de bebidas alcoólicas em veículos de massa, ou se se quer proibir o fumo em ambiente fechados, ou se se deseja disciplinar o uso desse ou daquele medicamento, essas ações são apresentadas como atentatórias à liberdade pessoal e o Estado é visto e ridicularizado como “Estado Babá”. 

Não por acaso, um encarte de três ou quatro semanas atrás que, no Globo, apresentou diversos artigos nesse sentido – sob o título “Liberdade em Debate” e que se propunha colocar em discussão “como o excesso de regulação pode afetar a livre expressão, a vida dos cidadãos e até a economia” – só continha um anúncio, e de página inteira: o da Souza Cruz, que defendia “a liberdade de seus consumidores adultos para fazer suas escolhas livremente”, nivelando os conceitos de livre-concorrência, livre-arbítrio, livre-iniciativa e livre-expressão. No caso aqui, me desculpem os fumantes inveterados, temos a raposa patrocinando o galinheiro...

Penso que o Estado deve ter a sua existência fundamentada na promoção do bem-estar dos seus cidadãos. Certas “proibições” nada mais são do que medidas educativas e de formação,de questionamento a atos que não se podem deixar ao juízo de uns tantos formadores de opinião “interessados” em lucrar a custa de qualquer coisa, mesmo que nociva à sociedade. E nem sempre a ação estatal pode se limitar a campanhas de conscientização, informação ou fiscalização. A cidade de Nova York baniu as gorduras trans. Para mim, parece ótimo que o tenha feito , mas há quem veja nisso um arranhão à liberdade e, pior, o prenúncio de uma escalada de castrações por governos discricionários. Em um dos artigos que li, declara-se com bastante objetividade que a proibição de certos anúncios (bebidas, por exemplo) pode prejudicar a liberdade de uma imprensa que deixaria de auferir o retorno financeiro desse tipo de propaganda...

Somos, ainda, um povo com deficiências de formação. Por mais que o pensamento desses teóricos rejeite essa tese, nem todos os brasileiros, em função de uma sociedade injustamente estruturada. têm discernimento para livrar-se do canto de sereia das falsas e perversas propagandas e fazer escolhas que sejam mais saudáveis. Precisam, sim, de informação e atos do Estado capazes de protegê-los dos espertalhões do mercado ávido de lucro, que usam figuras notoriamente populares, as “celebridades”, para anunciar o que é bom...e o que é ruim.

Penso que essas pessoas que não admitem o que chamam de “tutela governamental” adorariam o privilégio de “falar sozinhas”, utilizando-se da grande mídia que sustenta e é sustentada por essa falsa ideologia de liberdade. E temo que isso possa ter algo a ver com o Tea Party, a direita americana que preconiza “ menos estado e livre mercado”.

Questiona-se o fato de que o Estado pretende proibir a propaganda de microcrédito, para evitar que as pessoas incautas entrem em processo de superendividamento. Nada mais correto, penso eu. Nada mais nefasto, argumentam eles. Será que essa turma – que defende a liberdade do álcool e do fumo - também pensa que o Estado deve se retirar do cenário na luta contra a dengue- deixando de “invadir” a casa das pessoas, que seriam livres para criar o mosquito que bem lhes conviesse? Será que imaginam um combate sério ao câncer de pulmão sem interferências na nociva exposição subliminar do cigarro à aquisição pública ou com a admissão do fumo em lugares fechados, sob a alegação de que qualquer um se mata como quiser? 

É livre o pensamento, é claro, e aqui exponho o meu. Para mim, atrás dessa “intransigente defesa dos valores da liberdade”, estão interesses corporativos, empresariais, mercadológicos, que pretendem, sim, a liberdade, mas de uns poucos, ainda que prejudicando a muitos.

Sobre o autor deste artigoRodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.

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