domingo, 23 de outubro de 2011

Você tem fome de quê?

Da Agência Carta Maior

DEBATE ABERTO

Você tem fome de quê?

A grande novidade do Fome Zero é que ele não trata a fome como metonímia do ideal de segurança alimentar, mas como metáfora, que nem por isso seria menos real. Em outras palavras, quem decide o que é “fome” é o próprio sujeito: fome de futuro, de justiça, de luxo, de alimento, de educação.

Durante muitos anos a separação entre a miséria e a pobreza radicou na diferença entre a fome e a má alimentação. As grandes campanhas para a erradicação da fome na África, na década de 1970, baseavam-se na racionalização dos processos de produtividade agrícola. O pressuposto de que o problema residia na baixa produtividade da terra e de que esta poderia ser melhorada com implantação de novas tecnologias não era falso, contudo sua aplicação gerida por organismos internacionais, não rendeu os resultados esperados. 

O análogo nacional, Fome Zero partia de um pressuposto muito mais discutível. Naqueles tempos, que ainda precediam o cinismo instrumental, hoje praticado pelos que antes defendiam a rigorosa abstinência do Estado em relação a economia, a ideia de distribuir dinheiro diretamente à população ressoava com as experiências paternalistas, populistas e assistencialistas. Programas como o Fome Zero ou o Bolsa Família, parecem ser bem sucedidos, mas não pelos fundamentos e justificativas pelos quais são propostos. Assim como os projetos da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) na África eram um fracasso prático baseado em um sucesso conceitual, nosso programas se impõe como triunfos práticos ainda a procura de boas razões que os justifiquem.

Uma hipótese simples. Tanto o Bolsa Família quanto Fome Zero, levaram, em consideração, quiçá inadvertidamente, a dimensão social do sofrimento envolvido na miséria. Os programas africanos, baseados em gradientes nutricionais, coeficientes de proteínas, ou na tipagem genética de sementes, envolviam uma forma de intervenção que destituía as populações nativas e seus saberes. Ou seja, o suposto natural da intervenção implicava que tais populações precisavam de ajuda, e que estariam dispostos a aceita-la, passivamente. Ora, ações deste tipo jamais deveriam ser consideradas como uma administração de massas famintas, mais ou menos como a fantasia pós-moderna em torno de zumbis animados pelo consumo, vazios de alma, mecanicamente orientados para a carne de outros humanos. 

Mais ainda, ações deste tipo nunca deveriam ignorar que tais atos se inserem em uma dialética do reconhecimento. É pela forma e conteúdo do ato de ajuda, que ele constitui uma determinada forma de vida, que sanciona como legítimo um tipo de sofrimento, que torna a transformação possível. Em outras palavras, se reconhecemos zumbis é este o tipo de sofrimento que produzimos reciprocamente e é esta a posição na qual fixamos nosso destinatário. 

Ao fazer chegar dinheiro, e não apenas víveres e insumos de sobrevivência, o Bolsa Família, sancionou uma posição nova para aqueles que viviam na miséria. Eles não tinham apenas que se alimentar, eles tinham que escolher como o fariam. Com pinga, rapadura ou mandioca, em desperdício ou economia, eventualmente até com o redobramento da fome, agora assumida como uma escolha. Ao oferecer ao destinatário este instante de escolha e governabilidade de sua própria segurança alimentar, há um a-mais que nenhum projeto administrativamente calculado pode produzir. Ora, esta indeterminação foi justamente alvo das mais sérias críticas, algumas delas, aliás, perfeitamente plausíveis. 

Lacan distinguia estes dois momentos da lei do reconhecimento opondo a caprichosa lei materna, que decide quando e como o objeto deve ser entregue, à lei paterna que submete a indeterminação da vontade da mãe à determinação simbólica. A mãe pode suspender sua ajuda a qualquer tempo. Isso investe o objeto dado de um misterioso traço enigmático que o torna portador do sinal de amor. Entre a mãe e a criança forma-se assim um laço metonímico, no sentido em que um entende-se como extensão, contígua e determinada do outro. Tendo uma parte da mãe a criança terá sempre a mãe toda consigo. Ela sentirá sua presença e sua potência. Mas tudo o que ela pode fazer é comportar-se de modo conforme a demanda materna, para assegurar a circulação dos objetos que dela provém. A lei de estrutura materna cria e mantém o dilema entre dependência e independência. Ela gera a infantilização da qual se queixa em seus filhos, de modo permanente e ambíguo. Vê-se assim, que em termos psicanalíticos, a antiga expressão, “Estado Paternalista” devia ser substituída pela ideia mais precisa de um “Governo Maternalista”. 

A lei de estrutura paterna implica outra dialética. Esta supõe que a potência não reside em quem doa, mas no uso que se faz do que se recebe. Sua imagem representativa não é a da mãe com a criança, mas a dos pais de adolescentes que estão dispostos a conceder uma mesada, desde que seja “para fins pacíficos”. Seu dilema é entre heteronomia e autonomia. A lei paterna gera uma relação de tipo metafórico, no qual novos e inesperados sentidos são criados com aquilo que é objeto de circulação. De fato é esta a grande novidade do Fome Zero, pois não trata a fome como metonímia do ideal de segurança alimentar, mas como metáfora, que nem por isso seria menos real. Em outras palavras, quem decide o que é “fome” é o próprio sujeito: fome de futuro, de justiça, de luxo, de alimento, de educação. O sofrimento se vê assim indeterminado no ato que visa tratá-lo. Ao contrário do capricho materno, que sempre sabe demais do que o outro chora e precisa. Aqueles que reduzem o Fome Zero a uma equação de compra de votos, ainda estão pensando na governança materna. Não se deram conta de que agora a questão foi bem posta pelos Titãs: você tem fome de quê?

(*) Psicanalista, Professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

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