De muda
Assessor Especial da Secretaria Geral da Presidência da República
Adital
Estou de muda na casa. A saída do Gabinete Pessoal do Presidente da República -governo Lula- para a Secretaria Geral da Presidência da República -governo Dilma-, com o ministro Gilberto Carvalho, levou a reorganizações na estrutura do trabalho e na localização física. A mudança foi para melhor. Salas mais amplas, mais espaço, no mesmo corredor onde funciona a Secretaria Nacional de Articulação Social.
Comuniquei ao Tiago que ia deixá-lo, ele que serve água, a água tão necessária nestes tempos de secura na capital federal, o cafezinho e o chá, que eu prefiro. Dias atrás ele tinha solicitado um apoio para ver a possibilidade de sua esposa também trabalhar na copa, já que o dinheiro anda curto e necessário. O Tiago me disse: "Nem todos tratam a gente como o senhor. Têm muitos aqui que nem vêem a gente. É como se a gente fosse invisível. Não conversam, não dizem bom dia ou boa tarde. A gente não existe, não pensa, não fala. A gente serve o cafezinho e ponto final. Em outros governos era até pior.”
Por essas bandas, por mais que se insista, o tratamento é sempre o velho senhor, ou doutor, que tanto abomino. Digo para quem trabalha comigo, secretária, contínuos, os motoristas que me levam pra cá e pra lá: "Esquece isso de senhor, de doutor, não tem nada disso. A gente é igual, é trabalhador. Temos apenas tarefas e funções diferentes, nada mais que isso.” (Sem esquecer que os salários são bastante diferentes.)
Cheguei na nova casa, novo ambiente, encontro a companheira que faz a limpeza. Pergunto o nome. Nonata. "Ah, teve uma pessoa que trabalhou comigo tempos atrás, na equipe do TALHER, que se chamava Nonata.” Ela: "Mas eu não gosto desse nome”. – "Por que?” — "É que quando nasci mamãe queria dar-me outro nome, mas meu pai obrigou o nome de Nonata. Estou com um processo na justiça para mudar de nome”. – "Qual o nome que queres?” – "Renata.” – "Sabes o que significa Renata?” – "Não. Se bem me lembro dos tempos de latim no Seminário, Renata significa renascida, nascida de novo. Assim, se trocares de nome, é como se nascesses de novo, fosses uma nova mulher”.
Passei a chamá-la de Renata. Quando me encontrou no corredor, antes de eu entrar na sala, disse: "Botei um presente pro senhor (sempre o ‘senhor’) na sua sala”. Ela deixou em cima da mesa, num copo, um buquê de flores: margaridas, cravos, lírios, damas da noite.
Aí, encontrei o Gildo, que serve o café, a água e o chá no novo corredor. Soube ter sido ele o construtor de um barco com os distintivos do Grêmio, feito de palitos de fósforo, todo artesanal, que o Elias, que trabalha comigo, me deu como presente de aniversário. Como a obra de arte estava um pouco esgualepada, como diria Olívio Dutra, ofereceu-se espontaneamente para consertá-lo e melhorá-lo. Dias depois de me entregar a obra toda bonita, repaginada, me disse: "Olha, mostrei as fotos que tiramos com o barco restaurado, e já tenho oito pedidos. O senhor (sempre o ‘senhor’) me ajudou”.
E tem o Marquinhos, sempre alegre e sorridente, que diz: "Ah, chefe!”- "Que chefe?” – "Não, diz ele, em primeiro lugar sempre o chefe!”.
Conto estes fatos por dois motivos. Um, para explicar um pouco a rotina das coisas do Palácio do Planalto e do poder. E de como hábitos, costumes, reverências acabaram incorporados, entranhados na vida das pessoas, sendo quase impossível eliminá-los, mesmo você sempre sentando na frente no carro, ao lado do motorista, e conversando de igual para igual, mesmo tomando um café da manhã coletivo todas as sextas com quem trabalha na Secretaria Nacional de Articulação Social, mesmo fazendo-se reuniões para discutir o trabalho ou festas para descontrair, e assim por diante.
Outro, porque cada vez que acontece um fato ou situação das relatadas acima (O ministro Gilberto Carvalho sempre diz nas reuniões e outros espaços: "Esqueçam as formalidades, essas coisas de ministro pra cá, ministro pra lá, a não ser quando for necessário por questões de cerimonial”), me lembro de Santa Emília, da comunidade onde nasci, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do sul, todos pequenos agricultores, que constroem e sustentam sua comunidade, sua Sociedade, seu time de futebol, sem essa de autoridades, de alguém mais importante, de isso e aquilo. E me lembro dos tempos em que morei na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre, onde pedreiros, serventes de pedreiros, donas de casa, enfermeiras, domésticas construíram Associações de Bairro, Oposições sindicais, pastorais, o Partido dos Trabalhadores, e fizeram, e continuam fazendo, mobilizações para melhorar a vida da sua vila e bairro, sem nada de senhores e doutores.
Estas pessoas constroem o Brasil ao longo do tempo, reconstruíram a democracia e estão levando este país a ser Nação soberana. O povo não é mais bucha de canhão como foi por séculos. Mesmo em outras épocas, resistia nos quilombos, nas organizações populares, às vezes sofrendo calado e esperando a oportunidade de sair da situação de escravidão e exploração. Não há senhores ou doutores. Há pessoas que lutam para viver, há pessoas que querem o bem dos outros, há trabalhadores que buscam justiça e igualdade.
O poder inebria facilmente. Os exemplos estão aí todos os dias, mesmo entre quem está ou estava ao lado das causas dos trabalhadores e dos pobres. Palavras como as do Tiago, gestos como os da Renata, do Gildo e do Marquinhos levam a refletir e a manter as raízes fincadas no chão onde deverão estar fincadas até o fim da vida.
Em vinte e seis de agosto de dois mil onze.
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