Sofrimento e Amor
Pe. Alfredo J. Gonçalves
Assessor das Pastorais Sociais
Adital
O sofrimento humano já rendeu,
ao longo da história, inúmeros estudos, comentários, livros, bibliotecas
inteiras. Apesar disso, a dor física em particular e o sofrimento da humanidade
em termos mais amplos permanecem como uma enorme interrogação sobre a existência
das pessoas, povos e culturas. O assunto é inesgotável e, por mais que se
investigue e reflita, o ser humano não dá conta de elucidar essa incógnita que
afeta milhões de pessoas que vivenciam situações-limite de tristeza, angústia e
desespero. O mistério do sofrimento, especialmente quando este recai sobre a
vida dos inocentes, não pode ser desvendado em termos racionais. Conhecem-se
muitas de suas causas e efeitos, mas não o segredo de seu sentido, se é que tem
algum. Diante de determinadas lágrimas, em geral amargas e silenciosas,
prevalecem a perplexidade, o absurdo e a impotência.
Como encarar a dor e o
sofrimento? Na maioria dos casos, ambos geram uma atenção centrípeta. Aquele
que sofre, quem quer que seja, pelos motivos mais diversos e por estar num
momento debilitado, tende a concentrar sobre si a preocupação dos demais, tanto
os familiares e amigos quanto grupos e instituições de assistência. A dor, a
fome e a solidão se apresentam normalmente como três irmãs siamesas: não podem
esperar! A questão da saúde é questão humanitária, e por isso mesmo prioritária
em todos os sentidos, lugares e setores da sociedade. Daí os imperativos da
cruz vermelha, as sirenes das ambulâncias, as emergências do pronto socorro.
A tendência de concentrar sobre
si as atenções chega ao ponto de desenvolver certa chantagem (quase sempre
involuntária e inconsciente) na atitude de todo sofredor em relação aos outros.
Ganha grande destaque aqui um processo de vitimização, em graus diferenciados
de consciência e de percepção. Pacientes e crianças, com relativa frequência,
jogam com manobras chantagistas, de forma explícita ou implícita. A fragilidade
humana tem suas defesas "naturais”, revestindo-se de certos mecanismos
psicológicos para proteger-se. A dor e o sofrimento, assim como o amor, fazem
do ser humano uma flor sem defesa e exposta a ventos e tormentas bravias.
Os parágrafos anteriores servem
para introduzir o tema da paixão e morte de Jesus. Neste caso, assistimos à
inversão da tendência centrípeta por outra claramente centrífuga. Nos diversos
cenários da última ceia, da oração no Horto das Oliveiras, da longa e
penosa via crucise do alto do madeiro – todos extremamente
angustiantes e dolorosos – a atenção de Jesus volta-se não para si mesmo, mas
para os outros, incluindo os que o perseguem, torturam e executam. De fato, Ele
passa pela humilhação de um julgamento sumário, pela flagelação e crucifixão
atrozes, pelo abandono por parte de todos, pela agonia interminável na cruz e
pelo fracasso aparente da missão. Não obstante tantas e tão cruéis
adversidades, de forma inédita e surpreendente, Jesus concentra o olhar sobre
as mulheres que à sua vez choram por ele, sobre os soldados que o crucificam e
sobre a cidade que decidiu bani-lo como o pior dos malfeitores. "Maldito
todo aquele que é suspenso do madeiro”, diz a Carta de São Paulo aos Gálatas,
citando o Livro do Levítico (Gl 3,13; Dt 21,23). Numa palavra, em meio a dores
e sofrimentos insuportáveis, Ele se concentra na vontade do Pai sobre o plano
de salvação para a humanidade.
Semelhante comportamento, além
de revelar o amor infinito e insondável de Deus, revela, ao mesmo tempo, o ser
humano em sua mais profunda liberdade. O Deus-humano e o homem-divino se
entrelaçam para mostrar toda a dignidade da pessoa, homem e mulher. Esta foi
criada não para rastejar como os vermes, mas para voar como as borboletas. Em
geral, mesmo em situações de bem-estar, vivemos rastejando atrás de algo para
por no estômago ou algo para cobrir a pele, ou então atrás de dinheiro,
prestígio, títulos, poder, riqueza e sucesso, quando não simplesmente em busca
de consumo e aparência. Em lugar dos ideais da justiça, da solidariedade e da
liberdade, instala-se o egoísmo ou egocentrismo. A natureza humana parece
oscilar num vaivém intermitente e contraditório: ou cai inteiramente no culto
do próprio "eu” ou sobe na mais alta dedicação ao "outro”, com uma
infinidade de pontos intermediários entre os dois extremos.
Evidente que essa condição de
centralidade em si mesmo se aguça de forma acentuada, e até compreensível, no
caso de dor e sofrimento. Diante da vulnerabilidade de uma situação-limite, o
indivíduo é levado a fechar-se sobre si mesmo, contemplando o seu umbigo.
Torna-se um verdadeiro átomo onde as partículas – interesses, paixões,
necessidades e metas – giram em torno do próprio núcleo. Dessa forma, cunham-se
expressões como "sociedade atomizada” ou "multidão solitária”. Mais
do que isso, a pessoa é levada a pedir socorro, atraindo a atenção de quem
estiver por perto. O seu mundo de visão reduz-se à busca de alívio, procurando
todos os meios possíveis para fugir àquilo que o faz sofrer.
Devido a esse peso que nos puxa
para baixo, deixar de rastejar para alçar voo não é um ato mágico e nem se dá
da noite para o dia. Não se trata de um evento localizado no percurso de uma
existência, mas do cultivo diário e permanente de uma superação que só termina
com a morte. Exige, por isso mesmo, um longo e laborioso processo de
sacrifício, aniquilação e despojamento de si mesmo – kenosis – que, no caso de
Jesus, se expressa na Carta de São Paulo aos Filipenses (Fl 2,6-11). Exige um
martírio gota a gota, um "morrer aos poucos” para os próprios desejos e
anseios, para entrar num plano mais elevado, quer em termos sócio-culturais
quer em termos religiosos e espirituais. Os místicos, os sábios e as religiões
falam de retiro, ascese, contemplação.
O fato é que superar o egoísmo
em favor de uma atitude altruísta é um projeto para toda a trajetória de uma
vida. Não se esgota no curso de uma existência. Muitos conseguem dar um pequeno
passo nessa direção, alguns logram um passo a mais; raros são os que orientam o
rumo de seus passos por essa bússola. As exigências aqui são gigantescas, se
levarmos em conta a tendência da natureza humana de rastejar sobre a face da
terra, agarrando-se a tudo aquilo que lhe causa prazer, poder, influência,
domínio, etc. Prevalecem, antes, as leis da gravidade e da inércia que,
respectivamente, nos atrai ao solo e aí no mantêm prisioneiros dos próprios
interesses. A referida inversão de Jesus Cristo, ao contrário, interrompe o
círculo vicioso da vingança, a dinâmica "natural” que costuma ocorrer com a
espiral da violência, tema caro à obra do antropólogo francês René Girard
(especialmente em Des choses cachées depuis la fondation du monde,
Éditions Grasset & Fasquelle, Paris, 1978).
Para o cristianismo, a cruz é o
ponto máximo da elevação do verme humano à borboleta divina. O objeto maldito
de tortura transforma-se em símbolo universal de amor e de espiritualidade. No
madeiro, a agressão brutal e gratuita sobre um inocente confronta-se com o
perdão por parte deste último, ou seja, a violência mais refinada choca-se com
o gesto mais grandioso da história. A essa violência humana extremada, o
homem-divino responde com a misericórdia. Em poucas palavras, a vingança de
Deus é o perdão! O confronto e o choque entre o ódio, de um lado, e o amor, do
outro, é tão surpreendente que provoca uma faísca inusitada. Algo inédito se
ergue das trevas, uma luz se acende em meio à escuridão. Do madeiro maldito
brota uma flor, a mais bela e inesperada.
Isso explica a definição da
Primeira Carta de João: "Deus é amor” (1Jo 4,8). É tão forte e
transparente a superação da tendência centrípeta pela tendência centrífuga, a
condição de verme rastejador pela de borboleta voadora, que a faísca se faz
fogo abrasador e se alastra pelos quatro cantos da terra. Na verdade, a
ressurreição já está misteriosamente contida nesse gesto de perdão, de amor
incomensurável. A morte é capaz de devorar tudo, inclusive a vida. Mas não
devora os rastos que o amor deixa gravados sobre o pergaminho da história.
Nenhum gesto de solidariedade se perde no tempo. De certa forma, a ressurreição
se dá antes da própria morte. Esta não pode vencer o amor expressado no alto da
cruz, no auge da agonia. Ao contrário, o amor vende a morte! Podemos terminar
com as palavras que o evangelista coloca na boca de Jesus: "quando eu for
levantado entre o céu e a terra, atrairei todos a mim!” (Jo 12,32).